A Sombra do Trapaceiro

Vinte anos atrás.
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Cheguei ao palco armado para o comício na Avenida Dantas Barreto, pelo menos duas horas antes dos primeiros oradores. Queria ficar na turma do gargarejo e, para tal, saí do banco às 18 horas em ponto e corri para casa onde coloquei um par de tênis, um jeans e minha camiseta do PT.

Bem próximo ao palco existia uma barraquinha que vendia cachaça, cigarros e bombons, nada mais. Fui até uma mercearia das redondezas e comprei um pedaço de charque que pedi para cortar em pequenos pedaços. O meu palco também estava armado. Para cada lapada de cachaça lá se iam dois pedaços de charque. Uma hora depois a cachaça da barraca ameaçava acabar, o que me levou a ser previdente e comprar a meia garrafa que restava, deixando-a sob a tábua que servia de balcão, longe dos olhares de outros adeptos.

A cada cinco minutos o animador do comício anunciava que o “presidente” Lula já chegara ao Recife e se dirigia àquele local. Reagíamos todos em uníssono: “Lula Lá!!!” “Lula Lá!!!”. Sentia então uma coletiva ereção dos pelos dos braços e das pernas. Era hora de pedir mais uma cachaça e misturar o primeiro pedaço de charque com o que restava dela na boca, deixando o segundo, esse sim, para tirar-lhe o gosto.

Era noite da quarta-feira 13 de dezembro de 1989 e Lula não era presidente do Brasil, como anunciava o locutor. Disputava com Fernando Collor o segundo turno daquelas eleições após um primeiro onde ficaram para trás nomes como os de Brizola, Mário Covas e Ulisses Guimarães.

Eram as primeiras eleições livres para presidente da república desde 1960, quando o ciclo de normalidade na vida democrática desse país foi interrompido pelo golpe militar de 1964. Os partidos ainda eram frágeis, desestruturados financeira e ideologicamente, e o povo brasileiro, encantado com a possibilidade de escolher quem quisesse para ser seu presidente, não percebia o quanto estava à mercê de engodos e trapaças. A grande maioria, da qual eu fazia parte, votaria pela primeira vez para presidente.

Lula chegou nos braços do povo. Vinha de Natal e, após aquele comício, ainda faria outro em Aracajú.

Emocionei-me diversas vezes com o que representava aquele metalúrgico barbudo trepado naquele palanque dizendo a todos porque queria ser nosso presidente. Era impossível dar um passo à frente para ficar ainda mais perto de Lula como gostaria, mas, mesmo sem dar nenhum passo em qualquer direção, ao final do comício percebi que a barraca com minha última dose de cachaça estava muito distante, assim como o palanque. Fora levado como por uma correnteza, pelo movimento da turba enlouquecida.

Voltei para casa por volta da meia noite, em frangalhos. O par de tênis não serviu mais para nada, e a certeza da vitória – como anunciavam as últimas pesquisas – me impediu de dormir.

Lula descansou na quinta-feira, enquanto no horário eleitoral, Collor trazia a público sua caluniosa versão sobre o nascimento da primeira filha de Lula, e o depoimento mentiroso da mãe da menina, dizendo haver recebido proposta de Lula para que abortasse. Foi com esse trunfo na manga da camisa importada que Collor atraiu Lula para o último debate antes das eleições, na Rede Globo de Televisão, do seu patrono Roberto Marinho.

O trapaceiro se elegeu presidente do Brasil, e continuou trapaceando ao seqüestrar a poupança do povo, ao demitir milhares de cidadãos brasileiros apenas para justificar a fama que a Globo lhe dera de “caçador de marajás”, ao montar um esquema de enriquecimento ilícito com PC Farias e ao forjar a “operação Uruguai” para tentar se livrar do impeachment.

Demitido do BNCC sem ter sequer os direitos trabalhistas respeitados, fui à Cuba de Fidel colher informações para abrir o meu primeiro barzinho, nas Graças, de nome “El Bodegón”. Indignado com a demissão, comentei com alguns cubanos que a eleição de Collor deveu-se às mentiras apresentadas por ele como sendo seu programa de governo, bem como pelas acusações caluniosas contra Lula, no que fui veementemente repreendido por todos os meus interlocutores, pois, para um cubano, era impossível aceitar que um candidato à Presidência da República fosse capaz de mentir.

Ironicamente, dois anos depois, durante minha segunda viagem à Ilha de Fidel com o objetivo de adquirir nova decoração para o “El Bodegón” que já era um sucesso, assisti pela TV Cubana passeata comandada pelos presidentes da ABI Barbosa Lima Sobrinho e da OAB Marcelo Lavenère em direção ao Congresso Nacional, conduzindo o pedido de impeachment do “trapaceiro”.

Na inesquecível tarde da terça-feira 29 de setembro de 1992, o meu barzinho cubano “El Bodegón” encontrava-se apinhado de cidadãs e cidadãos brasileiros dispostos a tomarem parte da história deste país a partir daquele “território cubano” (no sentido etílico-cultural) implantado por mim no bairro das Graças, em Recife.

Era o dia da votação no congresso nacional do pedido de impeachment do trapaceiro que, há meses, apenas estrebuchava pra não perder a faixa presidencial, pois, da dignidade – que sempre lhe foi escassa - do respeito e da esperança que este povo maravilhoso um dia, tomado da melhor das intenções lhe dispensara, já não restava mais nada. A mobilização nacional assustou até os parlamentares da mesma estirpe do trapaceiro, levando-os a mudar seus votos de última hora, apesar de haverem se vendido a preço de ouro. O placar foi de 441 X 38 para que o trapaceiro apeasse da presidência do meu país. Após o voto decisivo, de braços dados, com lágrimas descendo em profusão pelas nossas faces, cantamos em uníssono e a todos os pulmões o Hino Nacional. Em seguida o “El Bodegón”, símbolo da minha resistência contra a infâmia de marajá jogada sobre mim e outros milhares de brasileiros cumpridores de suas obrigações por esse canalha que hoje é senador pelo Estado de Alagoas, serviu até altas horas da madrugada, um drinque preparado com rum cubano envelhecido e coca-cola que recebeu o nome de Morcego Negro – numa alusão ao jatinho do seu braço-direito PC Farias - e como petisco o prato Porco Enrolado, numa referência ao próprio.

Ironicamente também, dezoito anos e 10 meses após haver sido demitido, tomei posse como funcionário público federal na qualidade de “reintegrado”, tendo como advogado de todos nós funcionários do extinto BNCC, o ex presidente da OAB, Marcelo Lavenère, um dos principais protagonistas dessa página da história recente do Brasil.

A sensação que sentimos ao retornar ao serviço público e ter nossa dignidade reconhecida também pelo governo do nosso país, já que para nós mesmos ela nunca deixou de existir, deve ser a mesma que os exilados da ditadura sentiram ao retornar ao Brasil. Nos emocionamos, brindamos no primeiro dia de trabalho e, como esfomeados diante de uma iguaria, abraçamos as tarefas que nos foram confiadas. Fizemos isso com tanta intensidade que, no Brasil inteiro, muitos de nós, em apenas um mês de retorno, já foram indicados para algumas chefias.

Mais uma vez, a sombra desse trapaceiro que nunca foi punido pela “justiça” do meu país, ameaça embaçar o brilho da nossa dignidade e da nossa capacidade de trabalho. Voltamos como Celetistas que éramos, e, como tal, somos impedidos por “Lei” de assumir chefias.

Na esperança de ver mais essa injustiça castrada por quem de direito, endereço correspondência ao Ministro do Planejamento Sr. Paulo Bernardo, e ao Presidente da República Sr. Luiz Inácio Lula da Silva.

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Comentários

  1. Anônimo8:58 AM

    Embora tardia, que sempre seja feita justiça, "caro mio"!
    Que grata surpresa provocou-me tua visita ao meu "Vida e Poesia", muitíssimo obrigada, visse?
    Chego até aqui e me deslumbro com os teus escritos; ah, eu amo ler textos bem elaborados e isso tu fazes com maestria!
    Bravo, Rodolfo, o mundo inteiro deveria ler-te!
    Meu cheiro, Lou.

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