"Menino de Rua"- Esse Bravo Sobrevivente.





Contra tudo e contra todos.



O policial civil, que pernoitaria na Delegacia da Ceilândia - cidade satélite de Brasília - por ordem do delegado, tirara Divina da cela, onde se encontrava com outros meninos de rua, todos detidos durante uma batida policial nas ruas da cidade, no final daquela tarde, e a colocara numa cela desocupada, por alegar preocupação com possíveis maus tratos ou abusos sexuais durante a madrugada.

Divina tinha onze anos e, como era de se esperar, os sinais da puberdade ainda não haviam se revelado. Tinha a pele levemente bronzeada, os cabelos castanhos claros quase loiros, e um porte físico inferior ao da maioria das meninas da sua idade, apesar de não ser magra.

Por volta das duas horas da madrugada, o policial acordou-a com um sanduíche e um refrigerante para matar a fome, já que não fora oferecida nenhuma refeição àquelas crianças, com idades entre onze e dezesseis.

Em seguida, após despi-la, recebeu, sem nenhuma resistência da menina, seus carinhos através de sexo oral e depois a penetrou por trás, após pedir-lhe para ficar de quatro com o bumbum encostado às grades... O delegado, por segurança, havia levado as chaves da cela de Divina.

No dia seguinte, o grupo de meninos foi encaminhado ao Centro de Observação do Menor Infrator - na Asa Norte de Brasília - mas Divina não veio com eles. Só um mês depois, nós a receberíamos nesse centro de triagem.

Chegou por volta das 10h30min da manhã e, aos gritos de alegria e gargalhadas, juntou-se às dezenas de outras crianças de ambos os sexos que aguardavam ali - após entrevistas com psicólogos, exames médicos e odontológicos - a decisão: se retornariam a seus “lares” ou iriam para a FEBEM.

Aquele policial continuou abusando sexualmente dessa menina, durante todo o mês em que ela permaneceu ilegalmente naquela Delegacia. Ela contara isso sem nenhum constrangimento à equipe do Centro encarregada das entrevistas, bem como a todos nós, demais funcionários e internos.

O meu trabalho era o de Atendente Custodial, em turnos que incluíam plantões diurnos e noturnos. Todas as atividades dos internos no interior do Centro eram acompanhadas por nós, os atendentes: desde o horário de acordar, aos ensinamentos de como deviam fazer seu asseio matinal, o encaminhamento às salas de aula ou atividades criativas, esportes, lazer, refeições, e à sala de TV à noite, antes de se recolherem às suas celas, divididas em alas masculina e feminina, assim como nós, os atendentes. 

Outro interno, Manuelzinho, um preto azulado, de onze anos também e magérrimo, contara em prantos que fora abusado sexualmente numa outra delegacia pelos próprios “colegas” de cela, havendo sido penetrado na mesma ocasião por dezesseis deles, todos com idades superiores a quinze anos, tendo que ser levado, ao amanhecer, ao Pronto Socorro para estancar uma hemorragia.

No segundo ano de internato, Divina menstruou pela primeira vez. Ela permaneceu no Centro de Observação por um período muito maior do que o necessário para a triagem, por não ter casa para onde ir, e por haver se tornado uma espécie de símbolo dos abusos praticados nessas crianças, pelos que recebem da sociedade para protegê-las.

Elas chegavam ao Centro como protagonistas de uma história vivida num mundo desgraçado, sob os olhares indiferentes de uma sociedade espectadora e hostil e, ao saberem do carinho com que seriam tratadas naquele internato, nos perguntavam através das últimas esperanças que ainda teimavam em habitar seus olhares: De que lado estão vocês?... A quem servem?... Aos exploradores ou a nós?...

Nosso corpo é a nossa primeira ferramenta para enfrentar e/ou modificar o mundo mas, para aqueles meninos de rua, os seus corpos eram apenas moeda de troca por um prato de comida ou pela liberação numa eventual “batida policial”.

Naqueles dois anos que convivi com eles, tomei conhecimento, dia a dia, desse seu mundo miserável, da realidade brutal em que todos nós estamos metidos e cuja compreensão é embotada pelas palavras elegantes dos técnicos e sua ciência super-abstrata, ou pelas enganadoras dos políticos que tanto nos envergonham e enojam com suas mentiras, suas falcatruas, suas leis cheias de brechas...

Por que fugiam?... Eu não conseguia entender...

Quando pensávamos que havia um clima de confiança, de amizade até, pois acabávamos nos afeiçoando à maioria deles, éramos surpreendidos com uma fuga em massa.

No início, eu julgava ser pela busca da liberdade. A liberdade total oferecida pela rua: sem pais, irmãos mais velhos, professoras, horários, mesmo tendo em contrapartida a fome, o frio, a falta do lar, da mãe que os trocara pelo novo homem de sua vida.

Hoje, percebo que havia mais que essa busca pela liberdade. Os seus valores e as suas necessidades eram outras e tinham que ser supridas instantaneamente. Numa vida tão cheia de frustrações e humilhações, apenas aquilo que fosse capaz de produzir um prazer imediato: comida, sexo, bebida, maconha, cola, ou um gesto de valentia, seria seguro. Qualquer sentimento de prazer atrelado a um futuro abstrato, por mais próximo que estivesse, poderia frustrar-se, porque corria o risco de ser suprimido em algum momento por qualquer “autoridade”, inclusive a policial, ou a desconhecida que passava no carro de luxo em direção ao seu isolamento social.

O tempo passou e agora eu estava há oito anos, envolvido mais uma vez com as atividades de bancário, desta feita na agência do Banco Nacional de Crédito Cooperativo, em Recife, aonde chegara havia uns seis meses, transferido da agência de Ilhéus, na Bahia.

Através do vidro, pude ver aquela criança loira, de uns dez anos, com jeito de menino de rua, tentando chamar minha atenção agitando os braços sobre a cabeça. Quando percebeu que o havia notado, esboçou imediatamente um sorriso escancarado e, com uma das mãos, fez repetidos gestos me chamando. Era final de tarde e, àquelas horas, eu costumava sair da agência para comer uma tapioca quentinha, feita por uma senhora que todas as tardes montava seu tabuleiro bem ali, onde aquela criança estava.

Aproveitei para sair naquele instante e ver também o que queria aquele agitado menino.

Pediu-me um litro de leite. Estava com fome.

Ofereci tapioca mas, não... queria um litro de leite.

Dei-lhe o dinheiro e ele saiu correndo, com as mãos na posição de quem segura um volante de carro, buzinando e fazendo curvas.

A padaria era próxima e ele retornou a tempo de tomar todo aquele leite ali, na minha frente, após rasgar o saco plástico com os poucos dentes que lhe restavam.

Apresentava trejeitos de quem tinha talvez algum problema motor. Sua voz era como a de um bebê dengoso ou coisa assim, mais fina que o normal para a sua idade e tinha entonações que revelavam carências imensas.

Perguntou meu nome e, após ouvi-lo, passou primeira e arrancou em disparada, fazendo a curva na esquina do banco, em flagrante contramão. Voltou à noite, quando encostei a cabeça no travesseiro, após beijar meus três filhos em suas camas.

Custou-me dormir... Como seria o nome dele, onde estaria dormindo, como se defenderia dos colegas mais velhos e cheios das indispensáveis malícias para permanecerem vivos?

Achei que deveria ter perguntado tudo isso antes de vê-lo partir em seu carro... No dia seguinte, no final da tarde, o segurança da agência chamou-me para dizer que havia um menino perguntando por mim. Fui até a porta e lá estava ele, Edvaldo. Era o quinto filho de um total de doze, que sua mãe tivera em um pequeno lugarejo nas proximidades de Goiana, cidade localizada às margens da BR, que liga Recife a João Pessoa. Dormia na soleira do Quartel do Corpo da Guarda do Governador, vizinho ao Palácio do Governo, porque tinha medo dos “trombadinhas”.

Precisava de mais um litro de leite e também de ajuda para permanecer vivo, mas pediu-me apenas o litro de leite.

Em mais essa noite e em todas as outras que se seguiriam, ele viria com sua carinha de desprotegido, com seu peito nu, seu calção de pano de saco sujo e fedido, sua boca sem dentes, sua voz de deficiente, suas carências infinitas e seu carro veloz e barulhento para me tirar o sono.

Bastava imaginar se fosse um dos meus filhos que estivesse vivendo uma situação daquelas e eu me desmontava. Não conseguia mais dormir. Passei a querer saber mais sobre sua vida e a dos seus pais e irmãos. Seu pai havia abandonado a família e sua mãe tinha problemas mentais. Seus irmãos mais velhos estavam internos na FEBEM e os mais novos estavam com a mãe. Ao lhe perguntar se não sentia saudades da mãe, encheu os olhos de lágrimas e respondeu que sim, mas lá não tinha comida.

Eu viajava com freqüência a João Pessoa com meus filhos para visitar meus pais e irmãos e, na primeira viagem que fiz, levei Edvaldo também, tomado banho, de roupa nova e mais algumas na bagagem, além de uma feira completa para no mínimo trinta dias. Chegamos de surpresa ao lugarejo e à sua casa. Ambos eram paupérrimos. O questionamento que eu mesmo me fizera sobre por que sua mãe não lavava roupa para algum vizinho, estava explicado: ninguém ali tinha condições de pagar nada para ninguém.

Ao verem Edvaldo, foi uma festa. Todos o abraçavam e gritavam... Ao ver a feira, sua mãe me falou:

­- Desde anteontem ninguém come nada aqui, hoje eu já corri duas vezes pela rua de tanta fome!

A alegria dele e da sua família em se encontrarem deixaram-me muito feliz, apesar da dor com tanta injustiça e abandono.

Um mês depois, sou surpreendido com Edvaldo de volta às ruas do Recife.

- Mas rapaz, o que vieste fazer aqui? Tu não estavas tão bem com tua mãe e teus irmãos!

E ele respondeu.

- Acabou a comida!... Com aquela voz de bebê.

Procurei por diversas vezes interná-lo em abrigos donde sempre fugia para a liberdade das ruas.

Patrocinei por três vezes a compra de isopor e o dinheiro necessário para iniciar a venda de picolés, mas poucos dias depois, aparecia sem a caixa que havia sido tomada pelos meninos maiores.

Uns três anos depois, o banco foi extinto e assim eu perdi o contato com Edvaldo.

Abri o meu primeiro bar, o El Bodegón e, depois de uns dois anos, ele aparece de surpresa, após conseguir o endereço com um colega meu do banco, que encontrara casualmente na cidade.

Agora já era um rapaz , mas não perdera o jeito meio de bobo, sua voz fina, e sua imensa alegria quando me via.

- Rodolfo! "Sê meu pai!..."

Costumava me desmantelar com essa frase.

Permiti, então, que dormisse no interior do bar, após o fechamento. No horário de funcionamento, fazia as vezes de flanelinha, guardando os carros dos clientes a quem cativava com aquela sua voz e suas brincadeiras e, aos domingos, era meu vigia, já que não abríamos naquele dia da semana.

Após alguns meses, numa segunda-feira à noite, aproveitando o movimento menor no El Bodegón, fui até o bar de Fernando, que funcionava nas imediações do meu. Entre um whisky e outro, Fernando me alerta que Edvaldo estava abrindo o bar aos domingos à tarde, para venda apenas de bebidas e, que no dia anterior, estivera lá e se servira de algumas cervejas.

Nossa! Não era possível!

Voltei às pressas para o bar e, ao encontrar Edvaldo, perguntei:

­- Ô, rapaz! É verdade que você abriu o bar ontem e vendeu bebidas?

- Foi Rodolfo! Deu R$ 180,00. É noventa teu e noventa meu.

Claro que encerramos aí nosso relacionamento profissional, antes que acontecesse um problema maior.

Uns dois anos depois, ao abrir o El Paso Cabaré, na Rua do Bom Jesus, voltei a encontrá-lo. Estava extremamente musculoso. Fazia academia e lutava boxe. Trouxe-me alguns recortes de jornais com fotos suas lutando e era chamado de “O Holyfield Pernambucano”. Também uma fita de vídeo na qual ele próprio apresentava a academia onde treinava, falando corretamente, sem aquela voz infantil.

Fiquei muito feliz em vê-lo vencer tantas dificuldades sem se prostituir, sem seguir o mesmo caminho de todos os outros seus colegas de infortúnio.

Para levantar alguma grana, fazia apresentações em plena Rua do Bom Jesus, superlotada de pessoas, naqueles primeiros anos de funcionamento, quebrando coco verde com um único golpe com a mão espalmada, dava saltos de Kung Fu e fazia evoluções dos movimentos de Karatê.

Depois de um ano desaparecido, chega irreconhecível no El Paso. Mal conseguia andar e perdera também os movimentos em um dos braços. 

Conhecera uma mulher que estava morando numa casa que era disputada por herdeiros – seus irmãos. Para se proteger dos mesmos, convidou Edvaldo para morar com ela como companheiro, com direito a roupa lavada, comida e ainda alguns trocados. Em troca, ele a protegeria dos seus irmãos. Após uma primeira investida deles rechaçada pela bravura de Edvaldo, voltaram armados na semana seguinte, e acertaram cinco tiros de revólver calibre trinta e oito: um na perna, outro na coxa, um no ombro, outro no abdome e o quinto no pescoço.

Fazia pena vê-lo pelo Recife Antigo, tentando quebrar cocos ou reproduzir os movimentos das artes marciais que tanto amava e para as quais agora estava inutilizado.

Fui à procura dessa mulher e disse-lhe tudo o que um pai poderia dizer em defesa do seu filho.

Uns dois anos depois, ou seja, há uns quatro anos atrás, ao passar de carro pelo Parque Treze de Maio, escuto o grito do meu nome com sua voz inconfundível: “Roodoooolfoo!

Era ele. Vinha correndo atrás do carro, enquanto eu procurava um local para uma breve parada, já que era impossível estacionar ali.

Ficamos muito felizes em nos reencontrarmos e, após a troca de algumas palavras, ele disparou, com sua voz de eterno menino:

- Rodolfo! "Me dá" o número do teu celular...

- Eu não uso celular, Edvaldo..

- Então, anota aí o número do meu...

A desigualdade social que divide a sociedade brasileira é o principal fator determinante da criminalidade e do comportamento desviante das crianças e adolescentes e, conseqüentemente, da repressão que sofrem, inclusive com a eliminação física.

Com efeito, existem certos grupos de pessoas que se tornam, ao longo dos anos, o alvo da violência ilegal do Estado e da sociedade. Inicialmente, foram os índios, depois os negros. Nos anos 20, os anarquistas; ao longo dos anos 30, os comunistas. Durante o golpe militar, todos os que se opunham à ditadura. A partir dos anos 80, os meninos de rua tornam-se os “inimigos da sociedade".

Os grupos de extermínio desses menores têm origem nos esquadrões da morte dos anos 70. Muitos policiais do período do regime militar acabaram se engajando, posteriormente, nesses grupos. Os exterminadores são pagos por comerciantes e outros setores da sociedade, aos quais, a ação ou mesmo a simples presença de meninos de rua perto de seus estabelecimentos causa transtorno e prejuízo.

A impunidade dos exterminadores de meninos de rua deve-se, em grande parte, à ineficácia da Polícia Civil na elaboração do inquérito policial, o que imobiliza a atuação do Ministério Público. Os inquéritos elaborados pela Polícia Militar, em razão de diversas irregularidades, conduzem também à impunidade dos policiais militares suspeitos desses homicídios. O Poder Judiciário, que já é lento no julgamento dos processos em geral, fica limitado, ainda mais, pelo mau funcionamento das Polícias.




Comentários

  1. Anônimo10:51 AM

    Pense que criei esse Blog com um único objetivo, poder comentar os brilhantes textos de meus amigos, em especial de meu amigo Rodolfo Vasconcelos... O cidadão tem um dom especial em descrever suas histórias, todas verídicas, que o mesmo teve o prazer de viver, e hoje sinto que deve ter grande alegria em retratá-la para todos os seus amigos... Vou ver se tomo vergonha na cara e escrevo alguma coisa substancial aqui nesse meu espaço.
    POSTED BY IGUINHO AT 12:45 PM 0 COMMENTS

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  2. Rodolfo,
    Mais que a beleza e a suavidade que descreves uma história triste e cruel da nossa sociedade, injusta e ineficiente, me impressiona a beleza que há em ti!
    Gosto da tua escrita. Envolve. Emociona.
    beijos

    (liliana)

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  3. Rodolfo, me senti em casa, mas de um jeito triste. Sou de Brasilia, morava longe da Ceilândia, mas ela estava sempre próxima de mim. Essa dura realidade que nao se limita a um local, mas é sim uma praga espalhada pelo mundo, é abominável mesmo, é o pior que o ser pode fazer, que o desqualifica do cargo de HUMANO. Triste, mas necessários textos assim pra acordar quem vive no mundinho cor de rosa!!!

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