O PRIMEIRO BEIJO DE SIBONEY


Ator Sávio Rolim (pai de Nadja), em cena do filme "Menino de Engenho"




Ao meu amor, Nadja Rolim, cujos beijos acenderam estas lembranças.




Com a mudança da minha avó paterna Almerinda, de Caruaru para Jaboatão dos Guararapes, não precisava mais da vida do internato, e fui morar com ela e as minhas tias Marlene e Lalú. Depois de dois anos interno no Colégio Americano Batista com treze e quatorze anos, mudei para o Colégio Arquidiocesano, na Rua do Príncipe, também em Recife.

A casa da minha avó ficava há uns duzentos metros do terminal do ônibus, onde havia o Bar e Restaurante de dona Carminha, viúva que morava ali mesmo com suas duas filhas: Solange de vinte e poucos anos, e Simone, com treze. Ah!... Morava também o filho de Solange, que tinha apenas uns três aninhos.


Ali os motoristas e cobradores das linhas de ônibus que terminavam naquele ponto faziam suas refeições e tomavam suas cachaças e cervejas, após cumprirem seus turnos de trabalho. A galinha de capoeira ao molho pardo, ali servida, era famosa. Pediam sempre um pratinho com bastante molho e dois pães na serra para tira-gosto.


A pimenta era servida num litro de Rum Merino, por ser claro e deixar ver as rodelas de cebola, os dentes inteiros de alho e as pimentas malaguetas e de cheiro ali conservadas. O tamanho do vidro tinha também a finalidade de dificultar o “extravio” da pimenta pelos clientes mais apaixonados por ela.


Duas vezes por dia, na ida e vinda do colégio, eu fazia ponto por alguns minutos ali na janela do bar de dona Carminha. Também aos sábados, quando tinha de ir à rodoviária, que funcionava no Cais de Sta. Rita, apanhar a feira semanal que papai enviava no ônibus que saia ao meio dia de Umbuzeiro. Vinha numa grande cesta de vime, com tudo dentro: carnes, frutas, verduras e cereais.


As filhas de dona Carminha eram encantadoras. A mais velha, Solange, uma morena clara, trabalhava no centro do Recife e já saia de casa bem cedo, toda produzida. Tinha um corpo de “fechar o trânsito” na linguagem daqueles fregueses, e só voltava à noite. Às vezes, tarde da noite, e às vezes só no dia seguinte, para ouvir o sermão da mãe que passava na cara o fato dela já ser mãe solteira e ainda estar procurando “sarna pra se coçar”, além de dar o mau exemplo a Simone. Esta, um pouco mais clara que Solange, tinha os cabelos castanhos, compridos até a cintura e levemente ondulados. Estava sempre com as maçãs do rosto rosadas, pois passava o dia brincando de esconde-esconde com sua inseparável amiga Ângela. Quase sempre estava de batom e, quando passava correndo e sacudia os cabelos, jogava certeiramente no meu rosto, o cheiro do perfume Topázio que usara na noite anterior.


Quando me dei conta já estava apaixonado por Simone.


À tarde, quando terminava de preparar os deveres do colégio, corria pra vê-la da janela do bar brincando com sua amiga.


Percebi que já notara meu interesse, e nos horários em que eu aparecia ela não corria mais, ficava no balcão ajudando sua mãe no atendimento, dando umas deliciosas olhadas para mim pelos cantos dos olhos.

Sua amiga Ângela cuidou de nos aproximar: uma conversinha daqui, outra dali, e eu já estava indo ao bar de dona Carminha também à noite, após o jantar.


Fui seu primeiro namorado. Não via a hora de beijá-la, principalmente porque seria o primeiro a faze-lo.


Vaidoso que era com minhas conquistas, mantinha um caderno desde o primeiro ano do internato, onde anotava, sob o título: “Mulheres que beijei”, o nome das namoradas. E numa lista quase do mesmo tamanho, na página ao lado: “Mulheres que foram beijadas pela primeira vez por mim”. Eram todas garotas entre treze e quinze anos, mas, chamá-las de mulheres, valorizava a minha lista de troféus.


Precisava urgentemente incluir Simone nas duas listas, embora estivesse encontrando uma dificuldade enorme para concluir aquela adorável tarefa.


Quando eu chegava à noite para vê-la, já a encontrava pela vizinhança, sempre acompanhada da sua amiga. Era uma estratégia de dona Carminha pra não oficializar meu namoro com ela ainda tão jovem, bem como pra não nos deixar a sós um instante sequer.


Quando eu conseguia despistar Ângela e tentava beija-la, ela apenas permitia um leve abraço, escondendo a linda boca pintada com batom carmim . Só depois de muito tempo fiquei sabendo que sua mãe, para protegê-la, dissera-lhe que beijar na boca engravidava, e deu um trabalho enorme convence-la do contrário, pois, dizia que não queria passar pelo que sua irmã estava passando.


Seu aniversário caiu num sábado, o mesmo dia de apanhar a feira na rodoviária. Haveria bolo e salgadinhos, dissera-me ao me convidar para dançar um bolero com ela na sua festa.


Sua fama de exímia dançarina de boleros lhe rendera o apelido de “Siboney”, nome de um famoso bolero mexicano, enquanto eu, dançara apenas algumas vezes nas férias em Umbuzeiro, comandado por Darquinha, uma querida amiga.


Os motoristas, nas tardes de sábado, dia em que dona Carminha colocava boleros na radiola para que dançassem com as “amigas” que, coincidentemente, apareciam sempre no mesmo dia e horário, costumavam devorar Simone, ou melhor, Siboney, com os olhos, ao vê-la dançar com a amiga Ângela, já que sua mãe, sabiamente, a proibia de dançar com os clientes.


No percurso de ida e volta à rodoviária, não tirara Simone do pensamento. Seu perfume, seus cabelos soltos, seu sorriso de criança agora já com leves traços de mulher...E os boleros?... Estaria dançando nos braços de algum daqueles brutamontes, exímios dançarinos, treinados que eram nas pistas de dança de cabarés do Recife, como o Chantair Clair da Av. Rio Branco ou os sem nome da Rua da Guia? E o vestido, qual seria? Suas roupas, até então, eram todas de criança: umas bermudas até os joelhos e uns vestidos flocados, ou sei lá o que... daqueles que são apertados na cintura e largos na altura dos joelhos.


Desci do ônibus e fui direto para o bar. A radiola estava no último volume, e os boleros cantados por Bievenido Granda e Núbia Lafaiette se faziam escutar em todo o bairro.


Sentada numa cadeira ao lado das amigas, estava Simone, ou melhor... Siboney. A partir daquele instante, me rendera à maioria. Não havia mais espaço para a criança Simone.


Ela correu em minha direção como imaginara: cabelos soltos, perfumada, cheia de batom carmim, mas agora usava um lindo vestido de mulher, de cetim vermelho, sem alças, justíssimo e terminando bem acima dos joelhos, transportando-a como num conto de fadas, do seu antigo mundo de criança para um novo, tão esperado, de mulher desejada.


Todos olhavam para nós dois. Senti que dona Carminha estava orgulhosa com a beleza da filha e com suas conquistas, embora se esforçasse para não demonstra-lo.


Convidou-me para dançar e correu até a radiola para colocar o bolero que lhe mudara definitivamente o nome para Siboney. Dançamos até a noite chegar. Foi delicioso senti-la balançar entre meu braço e meu corpo, com o seu braço em volta do meu pescoço.


Agora eu já aprendera uns passos novos. Já dava umas paradinhas e ficava apenas balançando um dos pés, pra lá e pra cá. Ou, com os pés parados, apenas balançávamos nossos corpos, ritmadamente, ao compasso daqueles lindos boleros.


Só paramos ao anoitecer.


Siboney foi comer mais doces e eu corri para o caldeirão de cachorro quente, daqueles vendidos em frente aos estádios de futebol, de carne moída bem condimentada, com bastante colorau e muitas rodelas de tomate, cebola e pimentão crus, colocados na hora sobre o pão cheio de carne.. Comi uns quatro recheados com tudo que tinha direito, acompanhados de coca-cola. Ainda não tomava cerveja.


O movimento do bar, naquele dia, estava dobrado. A maioria dos clientes era de homens. Todos queriam ver as filhas de dona Carminha vestidas para a festa, mas, Solange não aparecera. Nos sábados à tarde, seus programas eram bem mais interessantes.


Siboney, sentido-se a única atração da festa, exibia novos modelos de caminhar e de sentar com aquele lindo vestido justo. Fazia isso impecavelmente. Devia ter ensaiado muito tempo, ou sempre, ao ver como sua irmã enfeitiçava a todos quando subia ou descia dos ônibus.


Voltamos a dançar, agora apenas como estratégia. Precisávamos despistar a todos.


A proximidade do corpo de Siboney por tanto tempo junto ao meu e seu delicioso perfume deixaram-me embriagados.


De repente, chega Solange chamando a atenção de todos, o que facilitou que puxasse rapidamente Siboney para dentro do seu quarto aproveitando que estávamos próximos da porta do mesmo, onde ela deixara, sobre a cama,  os presentes que ganhara. Não fechamos a porta, mas, aproveitamos para nos escondermos atrás dela. Não tínhamos muito tempo... Olhamos-nos apaixonadamente por alguns segundos e aproximamos lentamente nossos lábios, trocando um delicioso beijo adolescente, suave, silencioso, sem malabarismos, sem preparativos para nada... Apenas um delicioso beijo, com um único, leve e rápido toque de nossas línguas.


Putz! Até que enfim!


Já íamos saindo do quarto quando topamos com Ângela que, imaginando o que estava acontecendo, foi dar uma espiada para aprender, já que era uns dois anos mais nova.


Ao passar por ela, Siboney encostou a boca em seu ouvido e falou, pensando que eu não escutaria: “Ele comeu cebola!”...


Puta merda! Que cagada! Maldito cachorro quente! Fiquei irado, achando que caíra numa armadilha da sua mãe.


A partir dali, a festa foi esfriando, os clientes saindo daquela pra outra melhor, dona Carminha foi se deitar morta de cansaço por tanto que trabalhara durante o dia na confecção dos salgadinhos, enquanto eu e Siboney ficamos apenas com Ângela que, insistentemente, pedia que repetíssemos o beijo pois ela havia prometido de deixa-la ver. Mas, certamente ela não queria mais beijo algum naquela noite, embora tenha se revelado, a partir do dia seguinte, uma beijoqueira deliciosamente irreparável.


Frustrado, fui para casa.


Nossa! Como não me dera conta do resultado daquelas cebolas no cachorro quente?!... Logo eu, que tinha o maior cuidado com o que comia antes de sair para vê-la!


Mas, o pior ainda estava por vir...


Ao chegar em casa e bater na porta, fui recebido por minha avó e minhas duas tias que, apreensivas, perguntaram alarmadas, numa só voz: cadê a feira?!... E eu, com aquela cara de quem é flagrado cometendo um grave crime e procura, desesperadamente, um buraco para enfiar a cabeça, respondi: Meu deus! Esqueci no ônibus!!!...


Rodolfo Vasconcellos



"Morre lentamente quem evita uma paixão, quem prefere o negro sobre o branco e os pontos sobre os "is" em detrimento de um redemoinho de emoções, justamente as que resgatam o brilho dos olhos, sorrisos dos bocejos, corações aos tropeços e sentimentos."


Pablo Neruda




Comentários

  1. Anônimo9:23 PM

    Eu simplismente adorei...
    Viajei no tempo e tive inveja de Simone. Me vi dançando bolero!!!
    A propósito com tanta coisa p sentir ela se fixou na cebola? Lamento.

    Bjs

    Márcia

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  2. Anônimo11:04 AM

    Pense que criei esse Blog com um único objetivo, poder comentar os brilhantes textos de meus amigos, em especial de meu amigo Rodolfo Vasconcelos... O cidadão tem um dom especial em descrever suas histórias, todas verídicas, que o mesmo teve o prazer de viver, e hoje sinto que deve ter grande alegria em retratá-la para todos os seus amigos... Vou ver se tomo vergonha na cara e escrevo alguma coisa substancial aqui nesse meu espaço.
    POSTED BY IGUINHO AT 12:45 PM 0 COMMENTS

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