Uma manhã de domingo




Eu, nos braços de papai...

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Dedico este texto ao meu querido irmão caçula Alexandre Felipe, o único que estava presente aos acontecimentos daquela manhã de domingo e, ainda adolescente, tomou para si todas as responsabilidades.
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Meu filho Tel comentando este texto:

"Oi boy! Vendo esta foto do senhor com voinho me fez lembrar, ou melhor, relembrar, como a relação entre pai e filho é estreita e duradoura, apesar das pedras no caminho. Não tive a oportunidade de conhecer melhor o meu avô, mas sei que as minhas lembranças dele são as melhores e que em alguns momentos da minha vida ainda sinto grande saudade deste homem. Parabéns!"
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Nesses últimos dias lembrei muito de papai.
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É uma lembrança recorrente, porque criar filhos instiga essa comparação com a maneira como fomos criados. Vem naturalmente, não parte de uma vontade própria, nem traz a reboque, desejos conscientes ou inconscientes de medir-se mais ou menos competente. Por trás dos “nãos” ouvidos na infância, agora identificamos claramente, zelo... carinho... proteção... Dando consistência aos “nãos” que agora endereçamos aos nossos próprios filhos. 
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 Papai, na época do seu casamento com mamãe.

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A qualidade e a quantidade do tempo, dedicado por papai aos filhos, foram extraordinárias.


Bastou forçar um pouco a memória e vieram pequenos fatos do dia-a-dia, uns muito interessantes, outros menos. Enquanto alguns, ainda, por sua importância ou força, chegaram sozinhos, sem que fossem procurados ou sequer convidados, e logo instalaram-se entre aqueles, sem pedir licença... Simplesmente chegaram.
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 Papai e mamãe, na casa da Av. Antonio Lyra, em Tambaú - Paraíba.
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Creio que aquela vida mansa de Umbuzeiro - pequena cidade paraibana de noites frias, povo bom e duas lindas pracinhas que hoje não existem mais - contribuiu muito para que nós, seus filhos, crescêssemos muito apegados a ele.

A partir dos dez anos fui estudar em outro estado, voltei com dezessete, e, aos dezoito, já saía de novo, agora também para trabalhar. Com exceção de mais alguns anos que convivemos em João Pessoa, minha vida foi, realmente, quase toda longe dele. Mesmo assim, ele se fez sempre muito presente.
 Seu traje de motociclista. Voltaria a usar botas por muitos anos, montando seu cavalo C.ruzeiro, em inúmeras vaqueijadas em Umbuzeiro e redondezas.


Voltar nas férias escolares ou de trabalho, produzia reencontros inesquecíveis. A "radiola" só tocava os meus discos preferidos; as comidas, os doces, agora eram os que eu mais gostava; o meu pedaço preferido da galinha - a micula - era só meu. Na verdade, era mamãe quem organizava tudo, mas, com a anuência dele... Para deixá-lo feliz.

Moramos dezesseis deliciosos anos em Umbuzeiro. Quando lá chegamos, eu tinha apenas quatro anos e meio. Primeiro numa casa atrás da igreja, quase em frente à do padre. Depois, em uma outra, maior, próxima ao campo de futebol da época - que hoje deu lugar a uma escola. Nela havia um grande quintal que ele transformou num delicioso e proibido pomar, com frutas que, ali em Umbuzeiro, só nós tínhamos, como uvas verdes e pretas, laranja-bahia e até figo, além de uma variedade enorme das frutas mais comuns.

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 Com mamãe, filhos e sobrinhos, no Monte Bom Jesus - Caruaru-PE
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Quando nos ensinava alguma brincadeira nova, como jogar pião, bola de gude, fabricar e empinar papagaios, não adotava postura de instrutor, era, na verdade, mais um moleque da turma. Esse seu lado criança, moleque, o acompanhou pela vida a fora e era o que tinha de melhor.

Criávamos uma vaca leiteira – Sá Porcina – já velhinha, que vivia na fazenda de um compadre, próxima à nossa casa. Antes das cinco horas da manhã, descíamos a pequena ladeira que ligava nossa casa à fazenda, ainda dentro dos nossos pijamas de flanela, com as canecas de alumínio nas mãos, contendo açúcar e Toddy. Parecia uma procissão! Boa parte da cidade fazia o mesmo. O leite era tirado diretamente do peito das vacas para as canecas, em jatos fortes, misturando tudo e criando um “colarinho” de espuma que, ao final, passava pra nós na forma de bigode. Do excesso do leite era feita a coalhada, e dela retirada a nata que, depois de temperada com sal e assada, era colocada sobre o pão ou cuscuz.

Tínhamos um jumento muito bonito, de nome Roxinho, que transportava água em ancoretas, diretamente da nascente do Orondongo para uma caixa d’água elevada, em nossa casa, para que tivéssemos água nas torneiras e no chuveiro. Esse árduo trabalho era feito por Antonio, fiel auxiliar de papai e grande amigo nosso. Só muitos anos mais tarde, percebi que algumas amizades preciosas, haviam sido irremediavelmente tragadas pelo fosso que se formou entre o carinho necessário para mantê-las e a corrida em busca de ideais, hoje reconhecidamente menores... Prescindíveis até, para mim.
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A família Costa Pereira: Entre as crianças, tia Dalvanira é a terceira a partir da esquerda, tio Guila o quarto , papai o quinto e tio George o oitavo.


No pomar, tínhamos um cortiço que era aberto duas vezes por ano, para retirada do mel e da cera, ocasião de muita excitação para nós. A abelha Uruçu, dispensava a proteção de equipamentos de segurança. Bastava, apenas, pequeno chumaço de algodão nos ouvidos: mel e própolis em abundância, para nós e os amigos mais próximos.

Na safra de caju, as castanhas eram todas guardadas em sacos, depois selecionadas por tamanho e assadas com fogo de lenha no quintal, em tachos feitos artesanalmente a partir de latas de vinte litros, de querosene Jacaré. Era uma grande e bonita festa para os olhos quando o fogo entrava no tacho e crescia, mudando de cor ao queimar o azeite das castanhas. Terminávamos todos com mãos e bocas pretas de tisna, comendo as castanhas ainda quentes, após quebrá-las com uma pedra.

Na safra de manga, íamos todos para o Orondongo – um grande sítio de usineiros nas redondezas da cidade. Papai alugava os pés de manga por uma manhã inteira e nos esbaldávamos chupando uma deliciosa manga chamada “sapatinha”. Depois, nos banhávamos todos na fonte d'água que, anos depois, passou a abastecer a cidade com água encanada.
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Ex remador do Náutico, sempre que tinha uma oportunidade se exibia para mamãe filhos e sobrinhos, como nesta oportunidade no rio Ipojuca, em Caruaru.
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Das lembranças que precisei lembrar, a mais distante é da época da mudança para a casa do pomar. Nas tardes de domingo, ele e mamãe sempre criavam algo novo para nos distrair e também para se curtirem. Eram apaixonados, ainda estavam em lua de mel. 

Numa daquelas tardes, antes de passearem de mãos dadas pela estrada que levava à lagoa enquanto corríamos ao redor deles, resolveu tocar um pouco de violão para mamãe. Algumas músicas ele cantava e se acompanhava, outras, era ela quem cantava – tinha uma linda voz de soprano educada no coro do Colégio Sagrado Coração, de Caruaru. Resolveu então testar sua habilidade e tocou uma canção para mim. Pediu-me que prestasse atenção e fez um solo de uma canção completamente desconhecida. Ao terminar, perguntou: "e então, que música é essa?..." Olhei pra mamãe, depois pro violão e, por último para ele... Abanei negativamente a cabeça e... Nossa! Que decepção! Ele havia tocado “Parabéns pra você”. Eu tinha apenas uns seis anos e, até então, só ouvira "Parabéns" cantado em coro, nas festas de aniversário; assim, fora do contexto e instrumentalizada... Nem desconfiei. Não sei se isso teve realmente importância para ele, mas, a verdade é que nunca mais o vi tocar violão.

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Os tios Zezinho e Zito retornaram do Rio de Janeiro para visitar a parentalha. Papai colocou seu paletó de linho branco, o óculos de sol, e se juntou a eles.
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Mamãe confidenciava que ele fazia tudo de veneta. Houve a época da motocicleta; de jogador de futebol e ídolo do Umbuzeiro Futebol Clube (chegava, após os jogos, nos braços dos torcedores, que gritavam: H2O (hagá dois ó), seu Djalma é o maior!); criador de galos de briga; granjeiro de galinhas poedeiras da raça New Hampshire; criou o time de voleibol da cidade e saíam para jogos nas cidades vizinhas; montou uma oficina completa nos fundos de casa; construiu um grande aquário que mantinha funcionando com toda aquela parafernália de enfeites e equipamentos à custa de inúmeras viagens ao Recife, onde comprava os mais lindos peixes, e, por último, foi o juiz de futebol oficial da cidade, apitando todas as partidas do nosso time quando jogávamos em casa, com uma isenção tão grande que, deixava nossa equipe irada, tudo isso paralelamente ao cargo de Auditor da Receita Fedral.

Mas, em todas essas atividades, adotava a mesma tática: antes de iniciá-las, comprava um monte de livros a respeito do assunto e tornava-se expert, discutindo com os amigos em voz alta, como se uma briga fosse e gozando da cara deles quando não sabiam tanto quanto ele. Para isso, tinha uma estrondosa gargalhada. 

Em Umbuzeiro, quando estava no trabalho, e precisava com urgência de alguma coisa de casa, ia até a calçada, colocava dois dedos nos lábios e soltava um altíssimo assovio, incomparável, só dele, sua marca registrada juntamente com a gargalhada.

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Em Caruaru, com meu irmão Babá (Djalminha), e comigo. Sempre protetor e carinhoso.

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Uma dessas suas venetas durou mais tempo e trouxe muito sofrimento para mamãe: as festas de vaquejada...Numa manhã de segunda-feira – após haver viajado no domingo – chegou em casa com um lindo cavalo branco a quem deu o nome de Cruzeiro, iniciando ali, uma fase de muitas emoções para ele e excessivas preocupações para mamãe. Umbuzeiro quase não realizava vaquejadas. Aconteciam, na maioria das vezes, em outras cidades, e por isso, nem sempre ele voltava no mesmo dia. Mamãe sabia bem como essas festas terminavam: em mesa de bar, cercado de mulheres encantadas com sua coragem. Mas, uma queda inesquecível – como diziam alguns umbuzeirenses – onde boi, cavalo e papai formaram um só imbróglio a rolar por quase metade da pista, o tirou de vez dessas festas e dos auto-falantes. Antes disso, resolvera comprar um lindo potro para mim. Acertou o preço e, antes de fechar o negócio, me mandou mostrá-lo à mamãe. Era manhã de sábado, dia da feira semanal da cidade, e ela, casualmente, estava no terraço de casa. Cheguei riscando o cavalo, fazendo-o empinar – eu já montava muito bem, ele me ensinara. Mamãe quase morreu de susto e eu fiquei sem o meu cavalo... Creio que, ali, naquele momento, ela previu toda dor que haveria de passar... Chorei por quase uma semana, inconformado com o sonho que deixara de realizar.
Com mamãe, numa Manhã de Sol do carnaval de Caruaru, dividindo mesa com tio George e tia Geninha.

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Junto com a desistência das vaquejadas, abandonou também a bebida. Os carnavais, sempre tão animados em Umbuzeiro, passaram a ser uma tortura para ele.Lembro do primeiro que não brincou nem bebeu. Estávamos todos trancados em casa para evitar a entrada da troça que, por tradição, ia de casa em casa abastecendo-se de bebida e comida. Eles vieram silenciosos, concentraram-se em frente à nossa casa e, de repente, tocaram Vassourinhas com introdução e tudo. Depois, passaram a gritar seu nome, até desistirem. Lá dentro, sob o comando de mamãe, estávamos todos abraçados a ele.

Depois disso, resolveu que passaríamos os próximos carnavais fora da cidade. Em um deles, fomos para Suape - antes de haver o porto. Em outro, pro Juá, fazenda de Seu Sinhozinho, pai de Seu Virgílio, grande amigo nosso. Alguns passamos em Umbuzeiro mesmo, nas cachoeiras das terras de Filomeno Donato, grande amigo de papai. Foram passeios inesquecíveis. Nessas ocasiões, papai comandava o espetáculo. Durante o dia inventava inúmeras brincadeiras ou excursões pelas redondezas, e, à noite, não perdia o pique e contava suas fantásticas histórias cheias de heroísmo e perigos, passadas na fazenda dos avós durante sua infância, diante de uma platéia com olhos arregalados, incluindo aí, os nativos.
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Com os filhos, chegando para morar em João Pessoa, à beira mar de Tambaú, onde pode nos mostrar todas as suas habilidades como nadador e remador.
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Quando eu tinha nove anos, quase aconteceu uma tragédia em nosso lar.

Numa certa manhã de inverno, comandei meus irmãos, todos mais jovens que eu, inclusive o caçula à época, Luiz Carlos com apenas dois anos, para um passeio não autorizado pelos arredores da casa, onde, nos fundos, havia um enorme barreiro de água lamacenta que, por conta das chuvas recentes, estava cheio. 


Assim que chegamos, Luiz Carlos, escorregou e caiu em suas águas barrentas. Lembro do seu cocuruto, única parte não submersa, deslocando-se lentamente no sentido contrário ao da margem. Enquanto ele se debatia, meu irmão Nando correu por dentro da casa de comadre Nice, cortando caminho, e foi chamar papai na Coletoria. Babá, outro irmão, correu rápido pra casa, para avisar mamãe. E eu, com apenas nove anos, fiquei ali, diante da morte iminente. Mergulhei... Sem nunca haver dado uma única braçada antes, mergulhei, e consegui retirar Luiz Carlos. A imagem dele se afogando e a dificuldade para sair do barreiro de bordas escorregadias de massapé, eu nunca mais vou esquecer. Mamãe chegou primeiro, o colocou nos braços e tentou reanimá-lo. Papai apareceu em seguida, sem uma gota de sangue, numa velocidade incrível, e, ao ver aquela cena, desmaiou. Mas, tudo terminou bem. 


Os dias que se seguiram foram muito tensos. Papai, com Luiz Carlos no colo, acariciava seus cabelos e chorava. Fazia isso muitas vezes. Em outras, comigo no colo, dizia: “você é um herói, meu filho”. Dizia isso, como que agradecido, por lhe haver substituído tão bem naquela situação de extremo perigo. 


Naqueles dias, em algumas ocasiões, encontrei papai várias vezes em algum canto da casa, com o rosto entre as mãos, chorando silenciosamente. Esta é uma das lembranças que ainda me chegam de surpresa, mas, não luto mais contra ela. Antes, atribuía à forças sobrenaturais e a seres de uma outra imaginária dimensão, a minha decisão de mergulhar naquelas águas perigosas; anos depois, creditava o mergulho à questão do sangue, ao fato de sermos irmãos; agora, acredito na responsabilidade que todos nós já trazemos compulsoriamente ao nascer. A responsabilidade com nós mesmos, com os da nossa espécie e com todas as formas de vida, conhecidas e desconhecidas, embora, hoje em dia, prevaleça apenas a primeira dessas três responsabilidades. As outras duas, estão sempre subordinadas à conveniências econômicas – pessoais e coletivas - apontando um futuro trágico para todos nós.

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Os cinco primeiros filhos. Ainda faltavam Alexandre e Moema.
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Uma noite de sexta-feira, durante o jantar, ele pediu que nos deitássemos o mais cedo possível, pois teríamos uma grande surpresa pela manhã. Ficamos todos tão excitados com a notícia que, só conseguimos adormecer, muito mais tarde. Quando acordamos e abrimos a janela do quarto, lá estava ela: uma burrica - brinquedo que funciona como um carrossel de apenas dois lugares. Havia comprado todo o material e contratado Zé Vicente, o melhor carpinteiro daquelas bandas, para construí-la. Passara a madrugada toda trabalhando, só para ver a felicidade estampada em nossos olhos pela manhã.

A notícia espalhou-se rapidamente e logo nossa casa ficou com o quintal cheio de amigos, durante muitos meses.


 Minha primeira viagem ao Recife. Na Pracinha do Diário os fotógrafos fingiam tirar fotos de turistas (veja um ao fundo, à direita) e, se aceitassem, eles a tiravam de fato, e após receber adiantado marcavam o horário para entregá-las.


Nas madrugadas de sábado, quando eu ainda tinha dez anos, levava-me à casa do comerciante Zé Figueirôa, seu amigo, onde sempre era abatido um porco para venda da carne na feira. A primeira parte a ser retirada era a rabada que, depois de receber sal grosso, era colocada imediatamente sobre brasas para acompanhar alguns goles de cachaça.

Outra vez chamou um menino de rua que ia passando com sua turma e nos mandou brigar... No tapa mesmo! Depois, deu uns trocados a ele e me disse: “Tem que ser homem... tem que aprender a brigar”. Mas, era um pacifista, nunca o vi em atrito com ninguém. Eram apenas lições. Lições de vida, à sua maneira.


 Foto oferecida orgulhosamente por mamãe aos tios Zito e Margarida.

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Talvez por conta dessas cobranças, num dia em que a lagoa estava bastante cheia e as pessoas lá estavam pescando, resolvi mostrar também, minha capacidade. Consegui uma vara de pescar – dessas feitas por qualquer garoto de interior – e, com algumas minhocas retiradas do jardim lá de casa, fugi para a lagoa onde tentei pescar algum peixe, planejando trazer uma surpresa para o almoço. Mas, que nada! Não pesquei nenhum! No caminho de volta, encontrei um menino da minha idade com um bonito peixe recém pescado. Embora estivesse sem dinheiro, negociei o peixe com ele, dizendo que era filho de seu Djalma da Coletoria e que, outro dia lhe pagaria. Acordo feito, cheguei em casa como se o pescador fosse, recebendo os maiores elogios de papai ao saboreá-lo. 

No dia seguinte, durante o almoço, aproveitou um instante em que todos estávamos em silêncio e disparou: “O menino que lhe vendeu o peixe, ontem, passou hoje na Coletoria cobrando o dinheiro. Paguei pra você.” E continuou almoçando como se nada demais tivesse acontecido, deixando o meu castigo por conta das piadas dos meus irmãos e do olhar de decepção de mamãe.


Aos doze anos ganhei minha bicicleta e aos treze a espingarda. Após uma aula de como manuseá-la – era uma “soca-soca” e o tiro, preparado um a um, na hora, dentro do cano – saímos para uma aula prática, pelas matas da redondeza, para desespero dos passarinhos e preás.

Quando crescemos um pouco mais, encomendou a Zé Vicente uma mesa de ping-pong, comprou livros com as regras e as técnicas, iluminou a garagem recém construída, e, mais uma vez, encheu a casa com os nossos amigos. Uma certa manhã me surpreendeu em frente ao espelho, conferindo os primeiros pêlos do rosto. Perguntou: “já tem alguma coisa por aí?” – com ar de gozação – e trouxe do seu quarto um estojo completo de barbear. Ele já o tinha guardado, esperando apenas a oportunidade para me presentear.

No ano seguinte, já com dezessete anos, engravidei Maria, uma camponesa que se separara há uns seis meses, de um casamento que, por maus tratos, durou apenas dois. Encontrávamo-nos à noite, no mato, em algum local preparado por ela durante o dia, próximo à casa onde agora trabalhava. Lá, deixava escondida uma cerveja, que tomávamos juntos, sem gelo nenhum. Era muito gostoso esse carinho dela, enquanto eu me sentia muito bem em vê-la feliz, comigo ao seu lado. Ia sempre encontrá-la após sair da casa da namorada.

De repente, Maria desapareceu da cidade.Fiquei decepcionado, achando que havia sido abandonado, mas, só muitos anos depois, já casado e com os filhos, fiquei sabendo que papai providenciara a saída dela da cidade, com medo que eu me apaixonasse e fosse morar com ela. 

O Patrão dela era amigo de papai, e tinha casa também em João Pessoa, pra onde levaram Maria, à noite...”de repente”.

Nessa época saímos de Umbuzeiro. Eu trabalhava próximo a Caruaru quando ele foi transferido para João Pessoa. Foi morar na praia, em Tambaú. Ali ele teria oportunidade de nos ensinar tudo o que aprendera em Praia Formosa – Cabedelo, na sua juventude. E, realmente, aprendemos muito.

Ele tinha uma “saúde de ferro” e havia sido remador do Náutico, em Recife. Costumava nos acompanhar a nado, enquanto caminhávamos em passeios pela praia. Ao final, sentia-se todo envaidecido.

Lembro-me de quando me interessei pela primeira vez por livros. Ainda criança, ele apresentou-me sua coleção completa de livros da “Vida de Tarzan”. Li todos e reli alguns, até a chegada em Umbuzeiro dos “Gibis”. Hoje, quando assisto filmes como “Dança Com Lobos”e, principalmente, a refilmagem de “O Último Dos Moicanos”, sinto imensamente, que tenham demorado tanto para produzi-los.


  Imagem das manhãs dos seus domingos: entre as plantas que cultivava e as gaiolas com sabiás e curiós, uma cerveja no seu copo de alumínio, sempre com o cigarro e seu boné, curtindo descalço a moradia à beira mar.
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Pouco antes de localizar meu filho com Maria, morando eu ainda em Ilhéus, na Bahia, recebi a notícia do primeiro infarto de papai... Não conseguira deixar o cigarro. Junto com a cerveja, após vinte anos de abstinência, eram, agora, sua única distração: todos os dias, sempre uma antes do almoço; nos finais de semana, se permitia um pouco mais.

Num domingo, já morando em Recife, recebi a notícia de um novo infarto, mas, estava tudo bem, já fora socorrido e medicado, ficando apenas em observação. Por ser um domingo, ainda cedo, fui visitá-lo naquele mesmo dia.

Saímos todos em direção a João Pessoa, deixando para banhar e trocar as crianças na casa de Dª. Antonieta - minha sogra à época. Depois lhe faríamos uma surpresa no hospital.

Todos os domingos, os filhos, genros e noras de Dª. Antonieta, se reuniam em sua casa para tomar uns goles de uma boa cachaça do brejo paraibano e provar do seu delicioso tempero. Quando chegamos, o grupo estava começando a se formar. Enquanto as crianças tomavam banho, sentei com eles ao terraço e tomei uns dois goles, enquanto o grupo, aos poucos, ia aumentando. Chegaram Salete e Eduardo Grisi, nora e filho de Dª. Antonieta. Cumprimentei Salete com um beijo e estendi a mão para Eduardo que, ao apertá-la, pronunciou solenemente: “meus pêsames, Rodolfo!” E eu, surpreso e atônito... O que!? Papai morreu?! 

Era uma manhã de domingo. O segundo Domingo de Novembro de 1986.


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Comentários

  1. Anônimo11:10 AM

    Pense que criei esse Blog com um único objetivo, poder comentar os brilhantes textos de meus amigos, em especial de meu amigo Rodolfo Vasconcelos... O cidadão tem um dom especial em descrever suas histórias, todas verídicas, que o mesmo teve o prazer de viver, e hoje sinto que deve ter grande alegria em retratá-la para todos os seus amigos... Vou ver se tomo vergonha na cara e escrevo alguma coisa substancial aqui nesse meu espaço.
    POSTED BY IGUINHO AT 12:45 PM 0 COMMENTS

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  2. O homem sensível em que te transformaste é fartamente, poeticamente explicado pela existencia de pais amorosos e apaixonados um pelo outro, pelos filhos e pela vida! Parabéns por tudo isso.. por ti e por eles!
    um grande beijo!

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  3. Anônimo11:54 AM

    Mais quee beleza de relato!!!! Show visse!!!! amei!!!!
    Violeta Amaral

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